O corpo e o lugar


Tema 1. O corpo.

O lugar imediato é, por excelência, o corpo. Sendo parte integrante do ser humano, com o qual se identifica e confunde, o corpo é também uma parte da totalidade dos objectos dispostos no lugar.

1.1. O corpo enquanto lugar

A minha amiga Bettips, referindo-se à afirmação anterior, ou porventura a outra, ou outras, que eu tenha feito ou sugerido, comentou: “Para mim, um lugar é mais do que espaço ocupado por um corpo, é mais o espaço ocupado por sentimentos.” Não vou discutir a sua opinião (“Para mim, um lugar é”), vou questionar precisamente a expressão “é mais do que”. Quando um arguente diz que o que disse, ou o que vai dizer, é “mais do que” já foi dito por outrem, postula implicitamente que o dito de outrem, não sendo origem de discórdia, é todavia um juízo defectivo, algo que não foi ainda completamente dito, algo que se ficou a meio e que, por conseguinte pode ser completado.

Para dar um exemplo, quando encho os regadores para regar os vasos do jardim, a água sai da torneira à pressão e os regadores enchem-se rapidamente à custa do ar que vem misturado com a água. E esta transborda. Se deixarmos assentar, o ar liberta-se completamente e podemos voltar a encher os regadores com mais água. Num regador com doze litros, o complemento de água pode ir a mais de um litro. Quando enchemos o regador pela segunda vez, ele passou a ter mais água do que quando o enchemos à primeira. Todavia, das duas vezes eles ficaram cheios. Só que da segunda vez, de acordo com o princípio de Arquimedes, o ar teve que sair para a água entrar.

Foi o que se passou com o comentário ao meu texto: foi retirado de lá, precisamente, aquilo que de mais importante dissera, precisamente que “o lugar imediato é, por excelência, o corpo” e substituído por “um lugar é (…) espaço ocupado por um corpo”.

Eu sei que à volta do corpo há um lugar. Precisamente uma hora antes de aqui chegar e começar a escrever entrei no metro na Avenida (linha azul), saí na Rotunda para fazer a ligação para Odivelas (linha amarela), saí novamente no Campo Grande para me chegar a Telheiras (linha verde). O que vou contar passou-se na linha amarela. Entrei e sentei-me num lugar entre lugares vazios. Na estação de Picoas entrou um mar de gente que rapidamente eclipsou os lugares vazios, sentados ou em pé. Calhou ao meu lado um jovem negro, como aqueles que se vêem no sul dos Estados Unidos, com o corpo a sobejar por todos os lados. Encolhi-me, fui cedendo o lugar e fiquei com os três quartos traseiros suspensos sobre o nada. Ao que vem esta história? Simples: saí daquele lugar, mas conservei-me no meu corpo. Exactamente: o lugar em que fiquei foi no meu corpo! É por isso que digo que o lugar imediato é, por excelência, o corpo”. È aí que eu fico quando me tiram todos os outros lugares. Mas tem uma particularidade: por mais lugares que me queiram tirar, desse não saio. E, se sair, é o fim. Mas já voltaremos a isso.

Porque tenho esta relação privilegiada por este lugar que é o meu corpo, digo que é um lugar imediato. Imediato quer dizer sem meio, sem mediação entreposta: entre mim e o meu corpo não há solução de continuidade (significado 1); não careço de um medium para comunicar com o meu corpo (significado 2).

O meu corpo é um lugar complexo. Na realidade, envolve três lugares.

Recordo-me de ter visto em embriologia que o feto se organizava a partir de três folhetos embrionários: o exoblasto, o mesoblasto e o endoblasto (imaginem uma torta: a massa, inicialmente plana, é enrolada sobre si própria até ficar uma parte externa - que vai ficar mais tostada e seca no forno, uma parte intermédia de textura também intermédia e, no âmago da coisa, um pequeno tubo fofinho e húmido. Assim são os nossos blastos). O exoblasto, que vai ficar em contacto com a placenta e os líquidos intra-uterinos, dá origem aos órgãos de relacionamento (aferência e eferência de sinais) através da formação dos tecidos epitelial e nervoso; o mesoblasto, camada intermédia, dá origem aos órgãos motores através da formação dos tecidos muscular, ósseo e de conexão; o endoblasto origina em termos genéricos as vísceras.

Na minha compreensão do corpo vejo também três corpos: um exocorpo, um mesocorpo e um endocorpo.

O exocorpo recebe e emite informação, produz conhecimento, estabelece finalidades, gera valores. Metaforicamente, ora lhe chamamos a razão, ora lhe chamamos o coração. São duas descrições da mesma realidade. Quando processa informação, o exocorpo é puro software encrustado nas sinapses, uma máquina de tratamento de informação binária; quando ama, promove a síntese da razão e do coração. Geralmente, baralha-se e dissocia-se: dinheiro e poder para um lado, sentimentos e ternura para outro. Mas damos demasiada importância aos neurónios: a parte importante é a pele, extenso manto que nos envolve e que está em contacto íntimo com o Umwelt.

O mesocorpo é o corpo animal com três funções básicas, a locomoção, a preensão e a atenção, e uma função exclusivamente humana, a fala. A locomoção relaciona-o com outros lugares e dá informações preciosas sobre a natureza desses lugares; a preensão permite a sua transformação; a atenção dirige o exocorpo para o seu Umwelt; a fala erige a verdade da essência dos lugares, sobretudo quanto é dita nas suas formas mais sublimes, como a música, as belas artes e a poesia.

O endocorpo é o lugar da logística: aquisição, transporte, distribuição e consumo de matérias-primas, recolha e eliminação de matérias residuais.

1.2. O corpo enquanto lugar da experiência dos lugares

A primeira forma de o ser humano experimentar o lugar é experimentando o corpo próprio. As experiências mais primitivas do corpo próprio enquanto lugar são as experiências de conforto e de desconforto. Com fome ou saciado, fraldas molhadas ou enxutas, temperatura rigorosa ou tépida, presença ou ausência do rosto ou do calor humanos. Numa fase precoce, o corpo é um lugar de satisfação passiva, um receptáculo. As ideias de felicidade ou de paraíso são transfigurações tardias de um ideal infantil de satisfação, entendendo a “satisfação” infantil como o “estar cheio” (satis) e o excesso de satisfação como “o estar a abarrotar”. O corpo torna-se um lugar de reserva do que quer que seja – alimentos, adornos, informação. Em suma: um armazém. Esta forma de experimentar o corpo (como sujeito de um desejo) é não independente de um contacto directo com o lugar envolvente e as suas entidades – os objectos desejados, que se supõe serem a fonte de satisfação de uma necessidade que deve ser suprida.. O desejo estabelece uma forma de o corpo-sujeito se relacionar com o objecto. O desejo pela positiva é o desejo de incorporar o objecto fonte de prazer; o desejo pela negativa é o desejo de afastar o objecto fonte de desprazer. A idealização do desejo, associado ao prazer ou ao desprazer, conduz, através de processos cognitivos complexos, à abstracção do bem e do mal, da virtude e do pecado, do prémio e da punição, de deus e do diabo, do céu e do inferno, todos como lugares idealizados. Ao longo do ciclo de vida, o corpo estabelece consigo próprio e com o seu envolvente uma multiplicidade de experiências. Não sendo possível no breve espaço deste ensaio analisá-las pormenorizadamente, apenas cito algumas suficientemente exemplares: a exploração, a procura, a compreensão, o afecto, a dádiva. Os exemplos são citados de forma gradativa e crescente. De puro espaço recipiente, o corpo pode transformar-se em espaço dador, oferecido como objecto de satisfação ao corpo de outrem. Estabelece-se esta relação de forma óbvia na sexualidade dos corpos; mas também, e como expoente maior, na imolação amorosa do corpo próprio para preservar a continuidade da vida, do bem-estar ou do valor de outrem.

1.3. Os lugares periféricos do corpo

O espaço físico adjacente ao exocorpo que o envolve é o lugar do corpo. É, portanto, o lugar de um lugar. O lugar de um corpo tem uma estrutura definida pela relação “ser lugar de” e que se compõe de uma zona de contacto (uma espécie de pele externa que envolve o corpo [zona proximal] e que é constituída não só pelas roupas, calçado, adornos, mas também por imagens, sons, odores – genericamente a zona distal ou o “panorama”) e uma zona de não contacto a que chamo, por analogia com a Lua, esse lugar tão especial, o lado oculto do lugar. Ao locomover-se o corpo muda parcialmente de lugar; ao manipular objectos o corpo transforma o lugar envolvente; a acção simbólica do corpo sobre o lugar idealiza o lugar. O lugar do corpo é conhecido primeiramente pelo corpo na medida em que o corpo age no lugar que ocupa – interagindo quimicamente, locomovendo-se, orientando os órgãos dos sentidos através de processos motores de busca (olhar, escutar, apalpar, cheirar) e processando as modificações físicas e químicas ocorridas na sua interface em impulsos eléctricos que transmite ao sistema nervoso central. Ao transformar as informações que percebe do lugar em cores, texturas, espaços, cheiros, melodias, tactos, algias, pressões, etc., os centros de processamento, centrais e periféricos, reorganizam o lugar acrescentando-lhe novas entidades e propriedades que são posteriormente, ou entretanto, reificadas através do trabalho e da actividade criativa. O trabalho e a actividade criativa agem sobre objectos, entidades do lugar que transformam em produtos ou artefactos. Esse lugar é um lugar de trabalho, de criação ou de recriação.

1.4. A inclusividade dos lugares

À semelhança das matrioschkas, os lugares podem ser concebidos encaixando-se uns nos outros: corpo, lugar do corpo, lugar dos lugares do corpo e por aí em diante. Ocorre o mesmo para os lugares descritos nos planos administrativo e geográfico, os locais: lugar, freguesia, concelho, distrito, região, nação, organização supranacional. E também no plano organizativo (armazém, fábrica, empresa, grupo; secção, pelotão, companhia, batalhão, regimento, etc.). Mas, enquanto as fronteiras geográficas, administrativas ou organizativas podem ser estabelecidas de modo claro e inequívoco, ao menos, num dado intervalo de tempo, as fronteiras entre os lugares poderão não existir sequer. Os lugares são uma espécie de espaço elástico que se distende ou se retesa, não arbitrariamente, mas como resultado da acção humana. Isso é verdade tanto externamente como internamente. As froteiras entre as diferentes partes da estrutura interna de um lugar deslizam permanentemente. O exemplo flagrante disso é o da fronteira que separa o panorama (a toatalidade do que é “visto”) do lado oculto do lugar envolvente – compete à actividade de exploração afastar permanentemente essa linha de fronteira.


Tema 2. As actividades

O lugar, pela razões expostas, raramente se pode conceber como algo que pertença à natureza. Numa selva inexplorada só existem lugares a partir do momento e na condição de que a actividade aí conduza o ser humano. Chegado lá, a selva converte-se num jardim selvagem e, com o passar do tempo produzido pela actividade, o seu espaço humaniza-se progressivamente. O lugar é, neste sentido, a totalidade do que cerca o corpo humano, totalidade cujos contornos se definem pela sua actividade: explorar, ocupar, tratar e habitar.


2.1. Explorar

Explorar é criar caminhos ou inovar rotas. Um caminho, ou uma rota, é a abertura de um espaço de experiência de novos lugares. As travessias marítimas, das montanhas íngremes e dos desertos áridos, a experimentação científica e tecnológica, a exploração espacial, a abertura de novos mercados, o lançamento de novos produtos, a criação da moda e de gostos artísticos, a leitura de livros e revistas, a incursões amorosas ou o simples perder-se dos pais na infância são expressões equivalentes da mesma actividade. Delas resultam sempre a insurgência de lugares novos.


2.2. A ocupação.

Uma das actividades mais impressionantes em que se joga esta relação entre o corpo humano e o seu lugar é a ocupação. Através da ocupação, o ser humano apropria-se do espaço do lugar, dispõe os objectos no lugar de acordo com critérios e sistemas de valor e organiza actividades adequadas à sua utilização (demarcação territorial, defesa da propriedade, arrumação, habitabilidade, produção, lazer e recreação). Um fenómeno interessante é a pré-ocupação, matriz de todo o projecto humano. A pré-ocupação é uma antecipação virtual da ocupação através da qual se jogam cenários alternativos possíveis e se testam decisões com base nos resultados previsíveis. A preocupação é um sentimento baseado na pré-ocupação e pode ter uma carga positiva (entusiasmo, arrojo, ousadia, esperança) ou negativa (insegurança, receio, inércia, desespero) consoante a tendência de um indivíduo para maximizar ou minimizar o sucesso dos efeitos desejados.

A ocupação e a pré-ocupação não resultam apenas da acção do humano sobre o lugar mas podem, inversamente, resultar de uma acção do lugar sobre o humano. Certos lugares predispõem o ser humano a andar mais ocupado (ou preocupado) do que outros, como os locais de trabalho, de convívio ou de habitação. Os locais de viagem, de exploração, de recreio ou de férias exercem uma acção menos duradoira e, por conseguinte, efémera. A relação corpo-lugar é meramente uma relação de presença, enquanto dura, e depois cessa, transformando-se a memória do lugar numa descrição, numa narrativa, num álbum de fotografias que nadificam e substituem o lugar remetendo-o para uma inexistência comparável à anterior a essas actividades. Pelo contrário a ocupação e a pré-ocupação, temporalizam o lugar, tornando-se mais importante o que já foi, ou o que virá a ser, do que aquilo que hoje, na realidade, é.

A pré-ocupação não ocorre sempre, e a maior parte das vezes não ocorre, antes da ocupação. A ocupação gera a pré-ocupação constante, sistemática, habitual, diferente da pré-ocupação nas vésperas de uma viagem associada aos preparativos, à satisfação e verificação dos requisitos de um empreendimento. Por outras palavras, a pré-ocupação distingue-se da preparação – aquela acompanha a ocupação, esta antecede-a: a pré-ocupação retira a ocupação, enquanto actividade de envolvimento num lugar, da presença e temporaliza-a; a preparação antecede a actividade e, fazendo parte dela, é pura presença.

  • O Ter e o Querer.

Quando nos relacionamos com um lugar e nos ocupamos, e o lugar nos ocupa, mantemos e gerimos o espaço do lugar e dispomos os objectos no lugar. O lugar de que nos ocupamos é próprio, natural e habitual; o lugar dos outros é alheio, estrangeiro e estranho. A linha separadora do nosso e do alheio é a propriedade e a relação que mantemos com o espaço próprio a posse. Ao espaço e aos objectos dos lugares de que nos apropriamos chamamos nossos e a atitude que mantemos com eles o ter.

A luta pela posse de um lugar ocorre sempre que este não pode, por uma razão que lhe é interna, ser possuído ao mesmo tempo por dois ou vários possuidores. É o caso da luta pela terra e os seus bens (presúria), pela propriedade material (aquisição, roubo), como a disputa por um título numa competição (corrida, jogo) ou por uma posição no emprego (candidatura, habilitação a concurso).

A força que anima e impele para a luta é o querer. O impulso da vontade é muito geral e quase se confunde com a própria natureza da vida. De certo modo, viver é querer.

Querer ter leva à disputa e é alimentado pela competição. Quando o corpo é o próprio lugar, o querer ter pode manifestar-se no querer ter uma pele jovem, umas jeans de marca, um corpo de Apolo ou de Vénus, um adorno ou um símbolo de prestígio, de status.

O querer ter pode ter por objecto da vontade o corpo de outrem, o desejo e o ciúme [a escravatura, a posse carnal, a transmutação, a captação visual, o sadismo], mesmo o corpo idealizado do outro, a sua alma.

  • Selvas e jardins

[O bom selvagem. A vida selvagem. O cultivo]

  • Rus e urbs.

[Da cultura à civilização]

  • O lugar do outro.

[O corpo do outro; a propriedade alheia. Dar, trocar, comprar e vender].


2.3. O cuidar do lugar

  • A ordem

O tratamento do jardim ou da horta, a lida da casa, a arrumação dos sótãos, de todas as matizes e de todas as interioridades, são aspectos particulares do cuidar do lugar.

Posicionar cada coisa no seu lugar é arrumar. Assim, o lugar das coisas passa a ser um lugar dentro do lugar. O conjunto de critérios que permite uma arrumação é uma ordem. Os lugares das coisas são a sua posição. Arrumar pode ser também mudar de posição. Muitas vezes, arrumar é arranjar uma ordem melhor do que a ordem existente. Este processo é inesgotável, há sempre uma ordem melhor.

O resultado da ordem é o bonito, o limpo, o organizado (cosmos, mundo), o resultado da não ordem é o feio, o sujo, o desorganizado (caos, imundo).

A Criação (monoteísta) do mundo reflecte a obsessão pela transformação do caos. Não explica quem criou o Caos, mas deixa subjacente que este precede o Criador e a Criatura.

Há a ordem dos outros que, geralmente, colide com a minha. Permito que as visitas me lavem e enxagúem a loiça; mas, por regra, não permito que ma arrumem. No dia seguinte, ao perguntar pela concha da sopa é que são elas: onde é que me puseram o raio da concha? Não a encontro no “seu” lugar!

[Está tão bem arrumado que nem me lembro onde é que o pus]

  • Os recursos.

[Recursos energéticos. Recursos culturais]

  • A Mediação.

[As ferramentas (por exemplo, um escadote). Um mundo de símbolos]


2.4. A casa, o lugar dos afectos.

A portugalidade é um lugar mítico, um lugar construído e reconstruído pela contagem repetida de estórias (mythoi), estórias que, exemplificando com a portugalidade, criam o sentido da relação com a mãe (terra verdejante e leite materno) e a ocupação sangrenta do solo, a terra, o lugar verde-rubro. [Lugares míticos: Pátria e Mátria.]

[Personagens míticas: o Encoberto].

Diz Fernando Pessoa:

O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amá-lo por ele estar na Europa.

Ser português no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade.

O verdadeiro patrono do nosso País é esse sapateiro Bandarra. Abandonemos Fátima por Trancoso.

Somos contra Roma, porque Roma veio destruir no paganismo a visão lúcida da vida.

Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.

[Outros lugares míticos: a terra e a casa.] A nossa terra é onde está a nossa casa.

O ET, a apontar o seu longo dedo no céu estrelado, diz “E.T. phone home”. O coração bate-nos intensamente, os músculos estremecem, sustemos a respiração. Quando estamos estrangeiros num lugar espraiamos os olhos no céu estrelado e o dedo aponta a casa. Pedir bacalhau cozido num restaurante em Manhattan, comer broa e caldo-verde no Huíge, ouvir Carlos do Carmo, Dulce Pontes, Teresa Salgueiro, Marísia em qualquer parte do mundo, são telefones que nos agulham instantaneamente para casa.

[Culto dos lares, génios e penates. Os lares, ou divindades tutelares da casa, da família e dos lugares habitados. A lareira, altar doméstico]

Ora, estórias são estórias, e as estórias, enquanto imagens, re-presentações da realidade, servem a maioria das vezes para vendar a realidade. Como as fotografias, funcionam como uma espécie de maquilhagem da realidade. [Mistificação platónica com a Alegoria da Caverna. Semelhanças da caverna - câmara escura]. Não uma realidade anterior, exterior e incognoscível, o mundo já criado na aurora do sexto dia da criação, mas a verdade do ser posta em espanto autêntico e inocente interrogação: poderia nada existir; todavia os seres são.

A linguagem é o lugar do desvendamento do ser – Die Sprache verweigert uns noch ihr Wesen: dass sie das Haus der Warheit dês Seins ist. (“A linguagem recusa-nos ainda a sua essência, a saber que ela á a casa da verdade do Ser.” Ueber den Humanismus, Heidegger) – mas não está em condições ainda de proceder a esse desvelamento por estar empastelada de imagens que velam o sentido da interrogação originária.

No final é necessário prestar ouvidos ao som que vem do não-lugar, do deserto. O silêncio precede e prepara a fala do Ser.


Tema 3. O lugar do não-lugar, ou A nova ordem de lugares.


3.1. Resíduos.

Temos as entranhas da cidade perfuradas por redes de águas residuais, nos campos usamos fossas sanitárias. Os resíduos sólidos são recolhidos em contentores e destinados aos lugares de tratamento ou a aterro. De forma descontrolada, lixeiras e vazadouros compõem a paisagem.

De uma maneira geral, sendo uma generalização que de fé se está a converter em ciência, pode dizer-se que, à medida em que os recursos minguam, cresce o lixo.

Até aqui encarou-se o lixo como o mundo (ou, preferentemente, o imundo) das coisas que não pertenciam a nenhum lugar. Está a processar-se uma grande mudança de mentalidades, a aceitação da ideia que devemos atribuir um lugar ao lixo, que nos devemos ocupar do lixo, que devemos arrumar e destinar cada espécie de lixo ao lugar apropriado e conveniente.

Os lugares para a recolha selectiva dos resíduos sólidos urbanos têm cores, como os separadores dos ficheiros físicos antigos, de cartolina e papel. Os lugares de aterro têm amostras por estratos que conservam uma memória da sua composição, como as descrições arquivísticas dos documentos que atestam as actividades e processos das organizações.

O futuro ditará o lixo como paradigma da ordem.


3.2. Vaguear, errar, perder-se: passear, viajar e fugir

  • O passeio.

Passear é caminhar, percorrer caminhos. [A senda, o caminho de pé posto, caminhos vicinais, arruamentos, estradas. Transportes].

  • A viagem.

Viajar é “perder lugares”. [A viagem de exploração, a viagem de negócios, a viagem turística, a viagem de visita]

  • A fuga.

Um lugar pode tornar-se objecto de recusa e impelir à fuga. Um lugar, um posto de trabalho, uma organização, uma empresa que deixaram de “nos dizer algo”; um lugar, que outrora fora um espaço de felicidade, manchado pela morte, pela separação, pela destruição; um sistema de valores, uma ideologia política, uma religião, uma teoria científica, um credo artístico que, subitamente, deixaram de fazer sentido e se esvaziaram; um território militarmente invadido e ocupado, feito pasto de chamas, assolado pelas intempéries, pela devastação, a fome e a doença; uma região, um país, que não dão oportunidades, e um Estado que cobra impostos e não protege;

Os refugiados […]


Ficha técnica:
Versão 1 - 31/OUT/2007 - versão base outlined
Versão 2 - 09/NOV/2007 - Actualização do item 2.4
Versão 3 - 15/NOV/2007 - Actualização do Tema 1
Versão 4 - 23/MAR/2008 - Reestruturação do Tema 1

Transcrição do Tremontelo

Sexta-feira, 26 de Outubro de 2007

EspAÇO
para um ensaio sobre o
ESPaço
o nome do esPAço é

L U G A R
um espaço onde se fala de lugares

do lugar GEOmétrico ao lugar GEOgráfico (Gaia, a mãe divina, sempre presente AQUI)



Tópico 1. Das representações.

Dizem que o lugar pode ser representado por um círculo: o lugar é um pedaço do espaço denso;

Para outros, mais restritivos, o lugar é apenas uma circunferência: é um pedaço do espaço vazio, um oco onde as coisas se inserem. Considerando um espaço a duas dimensões. Mutatis mutandis para um espaço a dez dimensões.

A essência do lugar é contaminada pela definição do espaço.


Tópico 2. Da colocação do problema.

O contexto do problema é a asserção "ser uma pessoa de lugares". Eu, por exemplo, sou uma pessoa de lugares. Tenho um lugar a que me refiro dizendo "o meu lugar". A questão consiste em saber "o que é um lugar?". E como colocar esta questão correctamente?


Tópico 3. Das questões conexas.

Lugar está para o Espaço, como Época está para o Tempo. Não é hábito dizer que se é uma pessoa de épocas. Ao contrário do lugar, que se tem um, que se tem muitos ou que não se tem nenhum, as pessoas têm uma época. Ou, preferivelmente, são tidas, pertencem.

Isto é apenas uma primeira impressão. Pode ser que uma análise mais cuidadosa o desdiga. As coisas nem sempre são o que aparentam.


Tópico 4. Do uso do termo.

De localização espacial pode resvalar para um atributo particular relacionado com a colocação de coisas no espaço. Por exemplo:

(a) Ordem: "a atleta portuguesa conquistou o segundo lugar..."
(b) Permuta: "ele deu-lhe o seu lugar no salva vidas..."
(c) Posição: "arranjou um bom lugar no Ministério..."

Pela ordem "natural" das coisas estes atributos devem ser ordenados da seguinte forma: posição, ordem, permuta. Primeiro está o pôr de pé e sustentar erguido, depois estabelecer a sucessão do antes e do depois, em seguida prover o lugar de um ente titular, ou se for caso para isso, trocar-lhe o titular.


Tópico 5. Algumas questões de etimologia.

Dizia-se stlocus em latim arcaico, veio a ser locus em latim clássico. O radical "st" aponta para o verbo latino "stare" ("STA" , proto-indoeuropeu, "fazer ou causar estar de pé").

Mas, quando se diz "e ainda arranjou um lugar no comboio" quere-se significar que se arranjou um lugar sentado. Pode-se estar sentado (a pessoa) em algo que está de pé, que subsiste (o lugar). Mas, e o movimento? É a pessoa que muda de lugar, ou são os lugares que se mudam e a pessoa vai neles, da mesma forma que vai no comboio?

Falar de estátuas jazentes é que não faz de todo sentido.

Topos (grego) - lugar no espaço (topografias, topologias, toponomias) e lugar no raciocínio (os tópicos).


Tópico 6. Da maior ou menor importância dos lugares.

Há os lugares importantes, de merecido destaque:

(a) Um lugar no Universo
(b) Um lugar na História
(c) Um lugar na Sociedade
(d) Um lugar ao Sol
(e) Um lugar no Quadro

...E há também:

Os lugares COMUNS.


Tópico 7. De como a excepção confirma a regra.

A regra: cada coisa em seu lugar (imperativo da arrumação). Então há uma ordem. A ordem, o problema da Europa desde há dois milénios. Quem impõe a ordem? É a questão do imperium. A ordem divina como paradigma da ordem natural.

A excepção: o saber não ocupa lugar. Logo, o saber, se não desordem, é o princípio da desordem.


Tópico 8. O Lugar e o Homem.

O que melhor caracteriza o lugar é a sua relação com o homem. É uma relação bipolar que tende da mais estrema estranheza à mais intensa familiaridade. Quando estranhamos um lugar, tendemos a colocar uma fronteira e proclamar que a partir dali é tudo estrangeiro. Por conseguinte, é tudo estranho, não habitual. Quando não estranhamos um lugar, tudo é familiar; podemo-nos levantar de noite sem esborrachar um nariz contra um armário ou partir uma unha do pé.

Em relação aos lugares estranhos, é possível uma das seguintes atitudes:

(a) negar - O lugar estranho é um não-lugar, uma atopia.

(b) ignorar - O lugar estranho é um lugar de não chegada. Toda a transcendência para esse lugar está comprometida. Está lá, possivelmente é um objecto de desejo, mas nada se intenta para lá chegar. É uma utopia.

(c) sentir curiosidade

(d) pré-explorar

(e) vagabundear

(f) passear

(g) viajar

(h) colonizar


Tópico 9. O Lugar e os homens.

Um certo lugar deve ser definido sempre como um ponto de encontro. São precisos, pelo menos, dois seres humanos para espacializar um lugar. Quando nos encontramos face a face, especulando nos olhos um do outro, a minha esquerda é a tua direita. Eu estou aqui, tu estás , ele está .

A espacialização é uma relação bipolar variando do mais distante ao mais próximo. O que está na iminência da proximidade é a ipseidade do eu revelada no meu corpo. No meu corpo, eu determino-me. No polo infinitamente distante, eu alieno-me. É a oposição radical, a minha alma, o meu duplo. Em todo o intervalo de variação, o que eu chamo os outros, a alteridade, a diferença do eu ao não-eu.


Utopia Ponto único. E começa a nossa história:


Era uma vez, numa época remota e num lugar longínquo, uma terra. Esta terra parecia, à primeira indagação, desabitada, pois nela não se conseguia vislumbrar um ente capaz de fala ou, ao menos, de uma abertura mínima para o seu mundo englobante. Até as árvores eram despidas de folhas e não havia musgos nem águas lodosas que contribuissem com um pouco de verde para a paleta local. (...)


versão 5



A
versão 0 foi posted by Perdido @9:42 na sexta-feira, 19 de Outubro de 2007

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