A tentação

O verbo quis ser homem. Pegou num bocado de argila com que recobriu a sua essência. Não soprou lá para dentro porque todo ele era já espírito. Limitou-se a dizer: Eu sou o que sou, sou o Símbolo, o que une as pontas e faz o reconhecimento, o que introduz a convexidade do espírito na concavidade da carne. Com os dedos, premiu as pontas soltas do barro até fundi-las e sentiu-se aprisionado na carne.

O seu irmão Diábolo pegou-lhe então num braço e arrastou-o até ao deserto para o tentar. Se queres ser homem, como os humanos, dissocia. Faz como eu que separei a luz das trevas, o céu da terra, os continentes dos oceanos. E o filho do Eterno respondeu ao filho do Eterno: Eu sou o conceito, não separarei. E sete vezes o irmão o tentou, e sete vezes resistiu. Cansado e amargurado, deixou o deserto e voltou à cidade à procura de mulheres.

E com a mulher que infatigavelmente o desejava pernoitou. Quis tomar-lhe a carne e não sentiu o desejo. E a noite foi uma luta corpo a corpo. Ela exangue e infeliz. Ele suou sangue e, finalmente, sentiu na boca o amargo do fel e do vinagre. E desejou livrar-se do corpo casulo. Como uma crisálida rastejou para fora do sepulcro, bateu asas e subiu ao céu.

Ser homem é, para deus, uma paixão inútil

Jesus suspirou na cruz, foi sepultado, ressuscitou, passeou-se entre os vivos e subiu ao Céu. Era divino, quis ser humano, um projecto em vão!

Os seres humanos não o querem ser. Pelo menos, não pedem para o ser: são, depois logo se vê.

O corpo é, para o ser humano, o seu lugar imediato. Através do corpo, o ser humano sente, conhece o outro, contacta, partilha.

Jesus não se fez corpo, dizem as escrituras que fez-se carne. E assegura-o o Credo de Niceia: incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine.

Carne entra naquela categoria onde alinham também o peixe, as aves e a caça. É uma categoria alimentar cuja totalidade pode ser igualmente expressa pelo termo carne. Os que comem carne nesta genérica acepção dizem-se carnívoros. O Verbo fez-se carne, e não corpo. Na Última Ceia, Jesus diz: tomai deste pão, ele é a minha carne; tomai deste vinho, ele é o meu sangue. Está errada a tradução que põe na boca do Verbo incarnado as palavras hoc est corpus meum; a tradução correcta seria haec est car mea.

Na realidade, Cristo dá a sua carne a comer aos discípulos antes que esta seja entregue ao vermes. A carne é corruptível. Ou é consumida ou apodrece. Pode permanecer conservada longos períodos em regime de crioconservação porque o frio retarda, não os impedindo, os processos de degeneração. Se se acredita, como fazem os cristãos (credo [...] in carnis ressurrectionem) é na ressurreição da carne, não da ressurreição do corpo.

Para um ser bem terreno, o ser humano, o lugar da carne – como o do sangue - é o corpo, o prato, o frigorífico ou o cemitério. Nenhum destes lugares conveio à carne do divino encarnado. O único lugar encontrado com os requisitos aceitáveis foi o Céu. E lá foi a carne toda para o Céu. Ressuscitada e ascendida.

Teria o pénis de Jesus ido direitinho para o Céu? Sobre estas matérias não há como recorrer aos especialistas.

O teólogo seiscentista Leo Allatius (1586-1669), protegido de Gregório XV e guardião da Biblioteca do Vaticano, para além de ser o primeiro grande especialista em matéria de vampiros, foi também o autor de De Praeputio Domini Nostri Jesu Christi Diatriba obra fundamental que dirimiu, de uma vez por todas a controvérsia a respeito do local onde se encontrava o prepúcio de Jesus.

Tal controvérsia teve um grande impacte na Cristandade desde os seus primórdios. Sendo o Cristo judeu, foi circuncidado com oito dias de vida como mandava a lei mosaica. A circuncisão, ou mais correctamente a peritomia, consiste na remoção do prepúcio, a prega cutânea que cobre a glande do pénis. Entre os judeus, os bebés do sexo masculino eram circumcidados pelo chefe da família no oitavo dia de vida, em que o circunciso recebia também o nome, por se considerar essa a altura em que a excisão do prepúcio provocava uma menor hemorragia.

Onde foi então parar o prepúcio de Jesus? Teria sido enterrado como era hábito? Quando e como se reuniu aos restantes pedaços de carne ascendidos ao Céu? Teria ficado para trás, abandonado e esquecido? Diz-nos o Leo no De praeputio que também subiu aos Céus e que se teria transformado nos anéis de Saturno.

Mais estranho é o paradeiro de parte do seu sangue. Na pressa de retirar os sentenciados da cruz para anteceder os rituais funerários proibidos aos sábados, ou de modo a provocar a morte imediata, para lhes encurtar a lenta agonia, era costume rogar ao procurador romano a autorização para quebrar as pernas aos crucificados. No caso de Jesus não foi necessário por este já ter rendido o espírito ao seu divino Pai. À cautela, um dos soldados trespassou-lhe um dos lados, de onde jorrou sangue e água. Diz a lenda que José de Arimateia recolheu o precioso líquido no próprio cálice em que Jesus deu vinho a beber aos seus apóstolos dizendo-lhes bebei, este é o meu sangue. E que, mais tarde, teria levado o cálice (Graal, provavelmente do latim gradalis) para a Bretanha e guardado num esconderijo secreto para só ser descoberto por homens castos. Mas isto já são lendas para outras oportunidades.

Carne e sangue são pedaços de um corpo inabitado sujeitos a mutilação e dispersão no espaço e no tempo.

O corpo não tem espaço nem tempo. O corpo é Lugar e Época. O corpo é a história que nós criamos no lugar a que chamamos Vida. Que tem o epílogo na Memória.