Ser homem é, para deus, uma paixão inútil

Jesus suspirou na cruz, foi sepultado, ressuscitou, passeou-se entre os vivos e subiu ao Céu. Era divino, quis ser humano, um projecto em vão!

Os seres humanos não o querem ser. Pelo menos, não pedem para o ser: são, depois logo se vê.

O corpo é, para o ser humano, o seu lugar imediato. Através do corpo, o ser humano sente, conhece o outro, contacta, partilha.

Jesus não se fez corpo, dizem as escrituras que fez-se carne. E assegura-o o Credo de Niceia: incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine.

Carne entra naquela categoria onde alinham também o peixe, as aves e a caça. É uma categoria alimentar cuja totalidade pode ser igualmente expressa pelo termo carne. Os que comem carne nesta genérica acepção dizem-se carnívoros. O Verbo fez-se carne, e não corpo. Na Última Ceia, Jesus diz: tomai deste pão, ele é a minha carne; tomai deste vinho, ele é o meu sangue. Está errada a tradução que põe na boca do Verbo incarnado as palavras hoc est corpus meum; a tradução correcta seria haec est car mea.

Na realidade, Cristo dá a sua carne a comer aos discípulos antes que esta seja entregue ao vermes. A carne é corruptível. Ou é consumida ou apodrece. Pode permanecer conservada longos períodos em regime de crioconservação porque o frio retarda, não os impedindo, os processos de degeneração. Se se acredita, como fazem os cristãos (credo [...] in carnis ressurrectionem) é na ressurreição da carne, não da ressurreição do corpo.

Para um ser bem terreno, o ser humano, o lugar da carne – como o do sangue - é o corpo, o prato, o frigorífico ou o cemitério. Nenhum destes lugares conveio à carne do divino encarnado. O único lugar encontrado com os requisitos aceitáveis foi o Céu. E lá foi a carne toda para o Céu. Ressuscitada e ascendida.

Teria o pénis de Jesus ido direitinho para o Céu? Sobre estas matérias não há como recorrer aos especialistas.

O teólogo seiscentista Leo Allatius (1586-1669), protegido de Gregório XV e guardião da Biblioteca do Vaticano, para além de ser o primeiro grande especialista em matéria de vampiros, foi também o autor de De Praeputio Domini Nostri Jesu Christi Diatriba obra fundamental que dirimiu, de uma vez por todas a controvérsia a respeito do local onde se encontrava o prepúcio de Jesus.

Tal controvérsia teve um grande impacte na Cristandade desde os seus primórdios. Sendo o Cristo judeu, foi circuncidado com oito dias de vida como mandava a lei mosaica. A circuncisão, ou mais correctamente a peritomia, consiste na remoção do prepúcio, a prega cutânea que cobre a glande do pénis. Entre os judeus, os bebés do sexo masculino eram circumcidados pelo chefe da família no oitavo dia de vida, em que o circunciso recebia também o nome, por se considerar essa a altura em que a excisão do prepúcio provocava uma menor hemorragia.

Onde foi então parar o prepúcio de Jesus? Teria sido enterrado como era hábito? Quando e como se reuniu aos restantes pedaços de carne ascendidos ao Céu? Teria ficado para trás, abandonado e esquecido? Diz-nos o Leo no De praeputio que também subiu aos Céus e que se teria transformado nos anéis de Saturno.

Mais estranho é o paradeiro de parte do seu sangue. Na pressa de retirar os sentenciados da cruz para anteceder os rituais funerários proibidos aos sábados, ou de modo a provocar a morte imediata, para lhes encurtar a lenta agonia, era costume rogar ao procurador romano a autorização para quebrar as pernas aos crucificados. No caso de Jesus não foi necessário por este já ter rendido o espírito ao seu divino Pai. À cautela, um dos soldados trespassou-lhe um dos lados, de onde jorrou sangue e água. Diz a lenda que José de Arimateia recolheu o precioso líquido no próprio cálice em que Jesus deu vinho a beber aos seus apóstolos dizendo-lhes bebei, este é o meu sangue. E que, mais tarde, teria levado o cálice (Graal, provavelmente do latim gradalis) para a Bretanha e guardado num esconderijo secreto para só ser descoberto por homens castos. Mas isto já são lendas para outras oportunidades.

Carne e sangue são pedaços de um corpo inabitado sujeitos a mutilação e dispersão no espaço e no tempo.

O corpo não tem espaço nem tempo. O corpo é Lugar e Época. O corpo é a história que nós criamos no lugar a que chamamos Vida. Que tem o epílogo na Memória.

9 comentários:

O Lápis disse...

...às vezes tem apenas uma etiqueta :)

Teresa Durães disse...

primeiro - se não passasse para o word nem conseguia ler.

segundo: tomai e bebei, este é o meu corpo

o verbo não é Cristo mas a palavra de Deus

"José de Arimateia recolheu o precioso líquido no próprio cálice em que Jesus deu vinho a beber aos seus apóstolos dizendo-lhes bebei, este é o meu sangue. E que, mais tarde, teria levado o cálice (Graal, provavelmente do latim gradalis) para a Bretanha" a lenda diz que o levou, ninguém sabe para onde... a cruzada ao Graal ainda continua. Há quem diga que está na sera de sintra. Há muitos lugares que dizem onde pode estar. Não se sai da palestina com um estalar de dedos e vai-se de Graal na mão para a bretanha.

o corpo ou a carne é indeferente. um coelho morto tem um corpo e nós comemos a carne. Deixamos os osssos (do corpo) e desprezamo-los.

Seja carne ou corpo o que cristo quiz dizer (na realidade um acontecimento bastante estranho comer o corpo e o sangue mas ele lá sabia o que queria) interessa esse tal suspiro na cruz e rendição que é o mais importante - a crença dele.

com sangue, penis e carne é preciso lembrar que há muitas bivlias e que a tradução do grego não era a mais exacta...

bettips disse...

Presa da prosa
neste lugar-ideia, nem sei porque te leio e aprendo, (de)preendo, intrincado espaço: para mim que tanto gosto dos verdes-ervas e azúis-marinhos (suspiro).
Abraços

Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) disse...

São muito estimulantes os vossos comentários, que agradeço com sinceridade.

lápis

às vezes nem uma etiqueta. fizeste lembrar-me o Saramago (Todos os nomes)

Teresa

1. O Word é um bom lugar para ler.
2. beber o corpo de alguém poderá, com imaginação, ser algo de surpreendentemente belo
3. O Verbo é o Logos de Heraclito
4. Pesquisei o assunto e concluí que há muitas lendas (até no nosso romançário!!!). Os locais onde possa estar não interessam muito, o que importa é o lugar do Graal que é único para cada um de nós.
5. Ainda não expus publicamente a minha descoberta de mudança no lugar sem deslocação no espaço (fica atenta à Estória onde se irá explicar tudo- dá tempo ao tempo)
6. Quando como um corpo, não como a carne. Quando como a carne não como um corpo. Está demonstrado?
7. Plenamente de acordo: o suspiro tem muito que se lhe diga e voltarei ao assunto.
8. Bíblia, que é um plural, não existe. É só uma maneira de falar de uma colecção de livros. Para os judeus é a Tora, aquilo a que os cristãos, creio, chamam de Pentateuco. Os católicos romanos acrescentaram ao Velho Testamento os sete livros chamados deuterocanónicos. Os cristãos das várias confissões acrescentam e retiram às suas colecções privadas os livros que lhes interessa e há um conjunto deles que não são aceites por nenhuma a que chamam de apócrifos. Os diferentes livros foram escritos em diferentes línguas, na maioria em hebreu e aramaico, os mais recentes em grego koiné. Se quisermos considerar a Bíblia UM LIVRO com duas partes e vários tomos, com capítulos e versículos, estamos a pensar na Vulgata, a mais importante tradução latina da igreja de Roma. As traduções para línguas vernáculas foi feita pela primeira vez por Lutero (para o alemão) e veja-se a confusão que foi. Isto tem muito que se lhe diga mas não vale a pena entrar por aqui. Eu uso versões latinas popularizadas porque o latim, além de ser a língua exacta, está morta. E posso usar as frases como se fossem inscrições funerárias de uma civilização desaparecida. Como só conheço grego ático dos velhos dramaturgos e filósofos dos tempos clássicos, abstenho-me de usar o grego koiné queera uma língua franca sujeita a muitas evoluções, pobre e pouco precisa. Paciência!

bettips

O corpo dá-nos o verde-erva, o azul-marinho, mas ... a côr púrpura da Paixão também é linda!

Porque o corpo é o lugar de todas as paletas.

Teresa Durães disse...

deixei um postinho sobre a minha versãio do Verbo

bettips disse...

O menino não me engana, já não...
Ainda há pouco estava por casa da Maria e falava em soninho etc... Ora como não é ubíquo, só pode ser entretimento.
Que é divertido e munto respeitador, o senhor gervásio, é, deus o salve!
Abç

Teresa Durães disse...

(pronto, já coloquei a árvore da vida eterna no local exacto)

bettips disse...

Pois... se eu tivesse onde se levanta o sol,
onde se deita a luz
e eu habitasse aí, entre o nascente e o poente,
se e se... chamaria a esse o meu lugar!
Bj

bettips disse...

A Paixão-corpo, sim.
Declinar verbos.
E adivinhar cores.
Abçs