A tentação

O verbo quis ser homem. Pegou num bocado de argila com que recobriu a sua essência. Não soprou lá para dentro porque todo ele era já espírito. Limitou-se a dizer: Eu sou o que sou, sou o Símbolo, o que une as pontas e faz o reconhecimento, o que introduz a convexidade do espírito na concavidade da carne. Com os dedos, premiu as pontas soltas do barro até fundi-las e sentiu-se aprisionado na carne.

O seu irmão Diábolo pegou-lhe então num braço e arrastou-o até ao deserto para o tentar. Se queres ser homem, como os humanos, dissocia. Faz como eu que separei a luz das trevas, o céu da terra, os continentes dos oceanos. E o filho do Eterno respondeu ao filho do Eterno: Eu sou o conceito, não separarei. E sete vezes o irmão o tentou, e sete vezes resistiu. Cansado e amargurado, deixou o deserto e voltou à cidade à procura de mulheres.

E com a mulher que infatigavelmente o desejava pernoitou. Quis tomar-lhe a carne e não sentiu o desejo. E a noite foi uma luta corpo a corpo. Ela exangue e infeliz. Ele suou sangue e, finalmente, sentiu na boca o amargo do fel e do vinagre. E desejou livrar-se do corpo casulo. Como uma crisálida rastejou para fora do sepulcro, bateu asas e subiu ao céu.

1 comentários:

Teresa Durães disse...

um texto lindo!

resistente à tentação, dá a face pelo que defende