O estranho lugar que é um portão

Publico agora um escrito de Perdido que tinha começado a preparar antes de nos deixar. Não sei ao certo se o autor o tinha por concluído ou se era um esboço para rever. Todavia, antes da sua partida, pediu-me que o publicasse no caso de não regressar nos próximos quinzes dias.

Eis o texto:


O estranho lugar que é um portão

Que estranho lugar é um portão. Passo o portão e entro, estou no outro lado; passo novamente o portão e saio, estou no outro lado. É um lugar por onde se passa para entrar e onde se passa para sair. Para o portão é indiferente, se se sai, ou se se entra. Para isso era preciso ter a noção de dentro e fora, ora os portões não têm noções. E o dentro e o fora não existem na realidade, somos nós que falamos assim acerca dos lugares.

O que é estranho no portão é ser um lugar onde não se pode estar. Isso é uma coisa deveras intrigante.

O Egas Moniz deu a vida para o descobrir.

Textos de Perdido

Eis pois agora a oportunidade de publicar os textos de Perdido após rigorosa selecção.

O texto agora apresentado cataloguei-o como anexo ao Ensaio sobre o Lugar.

Perdido escreveu vários textos a explorar a natureza do lugar: não são textos expositivos, pois não esclarecem ideias ou significações, não aduzem argumentos, não perfilam um ponto de vista a defender ou a atacar. São o que chamava “perambulações”, passeios quase obsessivos à volta de um lugar.

Nas suas brilhantes dissertações nos seus “serões de aldeia”, Perdido perdia-se a divagar sobre lugares, caminhos, partidas e chegadas.

Seguia à letra a ideia de que um caminho só se dá a conhecer “pela queima anaeróbica de açúcar nas miofibrilhas dos membros inferiores”, ou seja pelas dores na barriga das pernas. Nevasse ou gelasse lá fora, fazia as caminhadas, em substituição, no seu imaginário a custo de palavras. Nós seguíamo-lo na peugada.

Era como desembrulhar os nós de um novelo de lã usado nas brincadeiras do Bolinha e do Ratito. Sabíamos que o esforço valia a pena ao ver o novelo finalmente desnovelado.

O texto agora apresentado coloca a questão difícil de como relacionar um mundo interno, subjectivo, o mundo do Eu definido pelo pensamento, com uma externalidade objectiva, a Natureza, os Outros, o Além, de acordo com uma problemática dos antigos gregos, ressuscitada por Descartes com a noção de Coisa, a casa de espelhos partidos onde se reflectem o pensamento a extensão e a infinidade.

Perdido desconfia que Descartes não fala de Coisa (res) mas de Causa e que é necessário que se repense a problemática iniciada pelo Cogito a partir de uma experiência comum a seres humanos e a gatos, a experiência dos lugares.

Ao experimentar lugares relacionados, Perdido concluía, geralmente, que as pontes genuínas são uma mistura de ausências e presenças invisíveis. A essa re-ligação chamava Perdido a natureza verdadeira da Religião (re-ligatio).

Pena é não termos Perdido connosco para ajuizar do nosso esforço de interpretação.

Perdido encontra-se desaparecido desde o passado dia dez. Registámos que se encontra de boa disposição a ajuizar pelos artigos publicados depois dessa data, estando ele algures. Porém, depois disso já passou mais tempo do que gostaríamos.

Foi-se embora sem despedidas, dizendo apenas que ia acampar e explorar as montanhas e os rios de Trás-os-Montes. Levou consigo pouca coisa: fazia-se acompanhar do seu inseparável kit de sobrevivência. Preocupa-nos o facto de ainda não nos ter contactado, bem como sabermos ter deixado para trás todos os cartões bancários, telemóveis e medicamentos para a hipertensão. Que o seu anjo da guarda o acompanhe e o traga cedo para casa, para junto da família e dos amigos. As autoridades já foram devidamente alertadas.

Gervásio Leonel.


O exterior, a ausência inquietante do som e a presença do invisível

Ponho-me em bicos dos pés: nada vejo! À volta nada de útil a não ser uma velha cadeira desdobrável. Vou buscá-la. Tem uns oitenta centímetros de altura e um ar frágil embora a madeira, de pinho, ainda aparente uma suficiente robustez. Robustez é um termo demasiado forte, claro, porque só convém ao carvalho, o velho robur; é preferível dizer solidez! Desdobro-a não sem antes ter hesitado no tipo de operação a realizar. Basicamente é constituída por três peças que se justapõem ao fechar. Para abrir, uma das peças, a de maior comprimento que servirá de espaldar e de pés dianteiros, deve ficar hirta, erecta na perpendicular; as outras duas peças deslizam solidárias após empurrar uma delas, a inferior abrindo-se para formar os pés traseiros em perpendicular com a peça grande, que agora desliza um tudo-nada para a frente no sentido oposto, a superior que retoma a horizontalidade para formar o assento. Uma cadeira é uma coisa útil, serve para uma pessoa se sentar. É evidente que estamos sempre a dar utilidades novas às coisas úteis: uma cadeira pode servir de pequeno escadote para trepar a uma altura não muito elevada. Não o fazemos mais vezes por decoro: porquê pôr os pés, que andam no chão, num sítio onde normalmente nos sentamos? O assento é uma coisa sagrada, que não pode ser conspurcada: quer se trate do assento lugar do nosso corpo, quer se trate do assento lugar da cadeira. O assento é o lugar do poder e do privilégio: é o trono do monarca, a sede () do bispo, a cátedra do universitário. O assento é o lugar da morte e da ressurreição: é a “cadeira eléctrica”, é a cadeira do Salazar, é o sentar-se à direita ou à esquerda do Cristo, na Última Ceia, ou do Deus Padre, no Paraíso Celestial. O assento e o lugar são termos quase intermutáveis: quando pedimos para nos reservar sete lugares no restaurante, ou no avião, ou no teatro, no fundo, muito no fundo, estamos a pedir que nos reservem sete assentos. É certo que podem restar só lugares em pé – trata-se, todavia, de lugares de importância reduzida, que nos amesquinham e nos lembram que estamos sempre a ser relegados para uma casta inferior, a tornarmo-nos pessoas de segunda como negros num Apartheid. Mas pôr um pezinho é coisa a que às vezes nos atrevemos. Não se trata de “pôr a pata em cima”, acto de uma extrema brutalidade, de uma rudeza de bárbaros com tranças e bigodes lanudos. É só pôr um pezinho! O outro vem atrás, de mansinho. E, se está alguém a ver, até tiramos os sapatos por reverência. Não é o meu caso, estou descalço e tenho que subir. Pôr-me em bicos dos pés não resulta: nada vejo!

Monto-me finalmente na cadeira de pinho, que até nem está desengonçada; além de sólida, é firme. Serve perfeitamente para os meus propósitos. Alongo a coluna como vi fazer aos gatos, estiro o pescoço em curva na direcção da janela e espreito.

Um jorro de luz intensa obriga-me a semicerrar as pálpebras. É pleno dia, concluo. Do outro lado, paredes brancas, nuas, intensas, reflectem. Como a Lua, cogito. A luz reparte-se de igual por todos os cantos do quadro; as sombras não obedecem a perspectivas, são planas, são como que luz recatada, meditativa, ensimesmada. Não há pessoas, não vagabundeiam gatos nem cães, nas árvores alinhadas não cintilam as folhas prateadas por cair, nem revolteiam folhas já caídas ou a cair. Pressinto uma falta. Será que se pode pressentir uma falta? Que uma falta ainda não é enquanto não se descobre o que falta? Ou devo dizer: sinto uma falta. Como se a falta fosse já actual e positiva, um absoluto, e não a ausência de qualquer coisa que ali viesse a ser colocada num instante intemporal para ser, no mesmo instante, negada. A falta é o lugar do desaparecimento, da ausência, do abandono. Reflicto nisto enquanto dou voltas aos meus pensamentos. O que deveria estar ali e não está? Desisto de olhar, os objectos não nos aparecem por varrermos os lugares. É como a memória que queremos dizer e não podemos porque a temos debaixo da língua. O melhor é não insistir, pensar noutra coisa. A memória voltará quanto menos se espera.

Desço a cadeira, cansado da tensão muscular, e sento-me. No quarto semi-iluminado não há nada a não ser a cadeira, o meu corpo e a janela. Há pouco estávamos os três em processão – a cadeira, eu, a janela, numa continuidade que ia do interior para o exterior. Agora, a janela está lá em cima a advertir-nos que há algo lá fora, que esse algo se revela numa luz intensa e que, todavia, outro algo falta também. Nós, o meu corpo e a cadeira, cá em baixo, numa comunhão de assentos. “Nós” que termo interessante, reflicto, plural da primeira pessoa do pronome pessoal no caso nominativo. Este termo, “nós”, faz do meu corpo e da cadeira um colectivo pessoal: o meu corpo-pessoa, a minha cadeira-pessoa. “Nós” é um círculo num diagrama de Venn que mete lá dentro duas pessoas. Pessoa, personna, “o que repercute o som”. No teatro e na vida social, aos lugares que repercutem o som chamamos personagens. As personagens desempenham papéis que alguém escreveu para eles e proferem frases. Dizem aquilo que se espera que digam, de acordo com o seu papel e estatuto. Portanto, estamos aqui duas personagens, a minha cadeira e o meu corpo unidos pelos respectivos assentos, desempenhando, melhor ou pior, não sei que papéis, sabendo que algum som perpassa por nós.

… perpassa por nós. Perpassa o quê? É isso, é isso mesmo, é o som, era o som que faltava lá fora!

Levantei-me, ajeitei a cadeira que encostei à parede do quarto, alcei-me em direcção à janela, aparelhei as orelhas e escutei: era o som, ou melhor a falta do som… que estava ali, sempre estivera ali, até de me dar conta da sua presença como falta, de me dar conta da não presença do som.

Lá confirmei as paredes brancas, a luz tépida das sombras, o imobilismo das árvores de copas projectadas no azul intenso do céu. Não, não se ouvia nada. Apenas um cenário de filme mudo. Um mundo luminoso mas impessoal, sem máscaras. Algo não batia certo: onde há movimento, há vibrações acústicas que o cérebro interpreta na forma de sons. De certo que não havia ensurdecido, assim, de um momento para o outro. Para o confirmar até comecei a assobiar, mandei para o ar duas ou três palavras. Primeiro, daquelas que são certinhas, com certificado de qualidade e apólice de seguradora, que não ferem a sensibilidade das senhoras de idade e classe médias, que não despertam a mórbida curiosidade da polícia secreta, dos espiões e demais profissionais da escuta; depois, não fossem estas palavras, vagamente ciciadas, das que não são ouvidas por ouvidos de pessoas sérias e honestas – porque o autêntico ouvir não está no deixar entrar mas no atender o que entrou – comecei a usar termos grossos, dos que são atribuídos aos camionistas e aos trolhas, dos que são usados pelas mulheres ditas de má vida para estimular a cupidez dos clientes, proferidas com articulação pausada e sonora, que atravessam o espaço e vão perturbar no céu a concentração dos escribas que anotam os nossos pecadilhos no livro do juízo final. Não precisei, porém de mais testes para me certificar de que não estava surdo, que não estava em mim a razão por que não ouvia o som lá de fora. Simplesmente, se não ouvia era porque, ou o som não estava lá, ou algo impedia que chegasse até mim.

Se um percurso é interrompido pensamos automaticamente num obstáculo.

Sabemos que não é assim com a nossa vida: será interrompida e pronto! Pelo menos julgamos que será assim, porque deduzimos de outros casos que já presenciámos no passado. No meu passado há muitas mortes e poucas interrupções de vida. As mortes são notícias do obituário, uma página especial dos jornais, ao lado das notícias da política, do trabalho, da economia, da vida mundana, do desporto e de outras veleidades. Às vezes são notícias centenárias que nos lembram existências passadas de santos e heróis, de bandidos e cobardes. Mas estas não vêm ao caso para o fim dos meus raciocínios: não falam nunca das pessoas comuns, pessoas como a gente. Interrupções de vida, que eu registasse, houve poucas: a do Rui, filado pela droga e posteriormente internado em instituição psiquiátrica, aprendeu aí o gosto pelo álcool e morreu hepático; a do Luís, regressado da Alemanha com muita idade a trabalhar no duro, sempre disposto a uma história interessante, um dia chegou cedo ao trabalho, bebeu uma cerveja fresca e passou-se; a do Zé, de quem fiz meu amigo no dia em que o conheci, que na semana seguinte sentiu uns pequenos tremores na pele das mãos e, passado um ano, estava completamente imobilizado, respirando a pequenos tragos o ar, até que os músculos da garganta se cerraram inertes garroteando-o; a do pai que, nunca bebera uma gota de álcool, se deixou afogar nas águas insalubres do Tejo; a de outro Zé que conheci também no trabalho uma semana antes de se lhe partir o cordão umbilical com a vida, a esforçar-se até à última em preito de fidelidade a uma multinacional canina; a da engenheira Palmira, pessoa de afecto e merecedora de muito respeito, mas não respeitada pela vida que a ceifou prematuramente e sem negociação nem aviso prévio; a da madrinha Leninha, minha companheira dos passos que ensaiei em primeiro lugar, a mediadora entre a minha inexperiente infância e a maturidade distante dos meus mais velhos. Os outros casos foram casos de morte, como o dos avós que iam, um após outro, ano após ano, denunciando o contrato com a vida; como o dos camaradas abatidos em África, surpreendidos pela ceifeira fora do seu tempo e do seu espaço. A maioria dos casos era de mortes normais prognosticadas em todas as tabelas actuariais.

Tirando o caso da vida, que pode ser interrompida sem mais, sem algo a estorvar o seu percurso, qualquer outro percurso só poderá interrompido pela interposição de um obstáculo. Não estando surdo, por que é que o som não chegava até mim? Onde estava o obstáculo que o impedia? Olhei outra vez: o quadro permanecia o mesmo, inalterado na sua composição e qualidades, diria até que parecia uma fotografia, um poster como os que os adolescentes colam nas paredes dos seus quartos, que estava ali a tapar a janela para impedir que visse o lado de lá.

Deixei-me, por momentos, ceder à tentação do cepticismo. Haveria mesmo um lugar habitável para além do meu quarto, conforme me mostrava a minha janela? Ou seria a janela apenas um poster de quarto de adolescente, ali pegado à parede por aquela espécie de plasticina azul que se mete em cada canto e um pedaço no meio para o colar à parede, ou arrancar se for preciso?

Cheguei-me à frente movido pela curiosidade, pelo cansaço, pela aura de uma claustrofobia iminente. Senti o nariz a esborrachar-se e a regelar e uma mancha leitosa provocada pela expiração do ar quente toldou-me a percepção das paredes brancas intensamente iluminadas, das árvores e das sombras semidespertas. Registava ali uma aparição inaparente, uma barreira anti-som, uma visão camuflada, uma presença ausente: era o vidro.

Queremos ver e não vemos porque está à frente dos nossos olhos. É um vidro numa janela, ou numa porta contra a qual esbarramos, ou as lentes dos nossos próprios óculos. Com a manga da camisola esfreguei a vidraça até não restar uma pinga de vapor. Só lá ficaram uns filamentos de lã enovelados a uma esquina da janela. O branco retomou a sua alvura, o sol a sua luminosidade, as árvores a sua quietude. Presumi o som que continuou a ser desautorizado pelo vidro. Fiz uma soma a giz no quadro negro do meu cérebro e inscrevi por baixo daquele quadro a seguinte legenda: “O exterior, a ausência inquietante do som e a presença do invisível”.

Desci. Dobrei a cadeira e arrumei-a ao alto a um canto da parede. O tempo passara sem dar por isso. O horizonte tinha começado a ficar rubro e a luz fora-se esgotando, de nascente para poente, pensei.

Actualização do poste "O Corpo e o Lugar"

Ver a 3ª versão deste "poste".

O Plano de acção.


Antes de pôr mãos à obra é mister ter um bom plano. Depois, executá-lo rigorosamente.

A separação da globalidade da produção de Perdido em obras clara e distintamente individualizadas é o foco do plano proposto.

Discutimos esse assunto assíduas vezes. Para ele, interessava-lhe “fazer”, quando e como lhe apetecesse, “e passar à frente”. E rematava, autorizando-me: “Se achas diferentemente, faz o que te aprouver. Por mim, tudo bem! …

Como démarche metodológica, proponho-me iniciar este intento de organização com a produção publicada no Tremontelo, prosseguindo com as obras inéditas em papel e finalizando com a recuperação e transcrição da tradição oral.

À laia de justificação, considero as produções em blogue as suas peças mais terminadas e esmeriladas. Sentia-se muito à vontade no Tremontelo sem o constrangimento de um tema e de um público bem definido e permitia-se a todo o tipo de extravagâncias fazendo o que lhe apetecia, com a extensão e no momento que lhe permitia a sua disponibilidade anímica. “É como no campo, amigo Gervásio. Agora podas os ramos altos das árvores: ficam-te os braços a arder sem sangue nas mãos. A seguir mondas debruçado sobres os canteiros e as leiras: desce-te o sangue aos dedos e à cintura até mais não poderes. No fim, deitas-te no chão e experimentas as carícias do Sol e dos bigodes dos gatos”.

Ao contrário de um livro, o público na blogosfera é anónimo, limitado e directo, podendo o auditório interferir passado um curto instante desde a sua publicação. Perdido gostava muito que interferissem, polemizando. Não o fazendo, fazia-o ele na coisa alheia. Polemizar era um prazer supremo. Como dificilmente encontrava antagonistas, suscitava ódios ou desinteresse e incompreensão. “Vê-me isto, Gervásio. Vêm para aqui com os beijinhos, e mais as queridinhas, e os “ai que beleza, que me tocou no sentimento”, extraíste-me uma nota pungente das cordas do meu coração, e todo o género de marmelada em público e nas barbas da polícia dos costumes. Eu vou lá e digo-lhes: não gostei desta merda. Cai-lhes o verniz e assanham-se como os cães, corporativamente. Gente mole. Onde estão os descendentes das padeiras de Aljubarrota, das patuleias e dos esfola-frades?”. Usava muitas vezes o termo provocação no seu estrito sentido etimológico, “chamamento (ou convocação) para a frente”.

É impossível falarmos de Perdido sem nos dispersarmos. Para ele, “cada frase abre a porta a outra frase” e “às tantas já nem se sabe quantas locomotivas tem a composição”. Voltemos, pois, ao plano definindo os objectivos genéricos:

1. Inventariar o espólio disperso na Internet em sites, grupos, portais, weblogs, comments e chats.

2. Utilizar o espólio da Internet separando-o nas seguintes partes:

  • Concentrar e tratar tudo o que respeita às suas ideias teológicas e místicas (O Monoteísmo e os outros monos).
  • Reorganizar e concluir o ensaio Sobre o Lugar
  • Coligir, comentar e reorganizar os Filosofemas do Bardo
  • Coligir e completar com versões inéditas o Bestiário (Conversas com Gatos, Outros Animais)
  • Reunir a história do Sítio do Tremontelo
  • Organizar os artigos e escritos dispersos sobre saúde, alimentação e vida saudável (Culinária e Bem-estar)
  • Reunir em volume separado os Contos do Juvenal

3. Recuperar os escritos mais antigos e integrá-los nas unidades propostas. Criar mais unidades, quando se justificar.

4. Passar ao papel a memória de muitas conversas nos serões de fim-de-semana no Sítio do Tremontelo (“Bebe mais um cartaxito, Leonel - só me apelidava assim quando estava com um grão na asa - bebe, que te ajuda a desorganizar essa baixa pombalina construída no recôncavo do teu crânio.”).

5. Agrupar todos estes escritos em dois volumes – um filosófico e místico, outro “mais ou menos” literário.

6. Estruturar e redigir a sua obra magna, o grande esforço de toda a sua pesquisa, a História Natural da Cultura, obra mais imaginada do que escrita, que “envolve também a análise das bricofichas do AKI como veículo de circulação mimética”, como ele gostava de acrescentar sempre que se falava genericamente desta gigantesca conceptualização darwinista da Cultura.

Ficam por detalhar estes objectivos, definir as macro-tarefas do projecto e estimar os recursos necessários. A metodologia, vamo-la aos poucos refinando.


Espero, desta forma, desempenhar-me bem da espinhosa missão de que fui incumbido.

Obrigado, amigo

É com todo o prazer que assumo a missão que me destinaste. Espero honrar - o mérito me adjuve - o compromisso que acabo lucidamente de assumir.

Não é coisa fácil estar à altura daquele que é, desde há anos, meu orientador e mentor. Mas, como ensinaste, "o apelo da vida é fazer as coisas que ainda não estão feitas".

Dirias a seguir, que ter sucesso ou concluir pelo erro, são apenas fases da caminhada. Que suceder é caminhar e o fracasso é chegar ao fim.

Pois para ti o fim não é o objectivo, é apenas uma paragem absurda.

Bem hajas, amigo

Este lugar conta, a partir de hoje, com a dedicada e cordial colaboração do meu amigo de há longa data, Gervásio Leonel.

Dizem-me que sou pouco simpático e directo, sem papas na língua, como a lima rude e amargo, agreste e espinhoso como os simpáticos bichos que abrem galerias no subsolo do Sítio do Tremontelo (que eu nunca vi a não ser esparramados no pavimento da estrada nacional do Cartaxo para Almoster). Calhou ao Gervásio, por ditosa sina, a estrela que de ele fez pessoa afável e cortez no trato, dotando-o a natureza de fina inteligência que lhe permite dissecar as pessoas e as coisas, materiais e imateriais, como uma máquina de cortar fiambre. Não lhe coube por cultura e aquisição devida ao esforço , mesmo que amadora como a minha, a queda para estas coisas da tecnologia. Embora mais novo cerca de uma década, põe-me a zunir feito poste de muito alta tensão, depois a zurrar, quando telefona a meio da noite a perguntar-me coisas incríveis, seja para resolver o problema do browser que não lhe está a responder, ou que tem a memória em baixo, quer outras trivialidades íntimas de qualquer escrevinhador do século presente. Digo-lhe geralmente, e para pôr termo à agonia da conversa, que saia ou volte a entrar, ou, na expressão dos meus confessáveis desejos, que se deite e não se esqueça de acordar amanhã. Pessoa boa como é, ri-se mais por simpatia do que por sentido de humor de que, ao contrário de que julga, está mais despidinho que de roupa no dia em que nasceu. E lá continua a escrever com lápis, esferográfica ou caneta de tinta permanente, que colecciona obsessivamente, como colecciona vinis e outras preciosidades do século pretérito como se, por escassez de idade não o tivesse aproveitado bem, fazendo dele um lugar de retorno e de culto.

Conhecemo-nos há muito tempo, o suficiente para asseverar que é o meu melhor crítico e secretário. Digo "secretário" com a profundeza e a radicalidade da assunção etimológica do termo já que não nos liga qualquer relação profissional. É homem de guardar segredos. É homem também de saber quando e como revelá-los. Sobretudo, é homem de saber como entendê-los. Tem acompanhado, quase desde o início, o desenvolvimento do meu pensamento e da minha escrita de que é fiel curador. A ele devo muitas sugestões, no plano teórico relativas à teorização do "lugar", no plano prático relativas às medidas de preservação da natureza, de utilização racional dos recursos e da reconversão dos resíduos da humana e lixarenta actividade. Ao contrário da minha disposição, a dele encontra-se aberta para a esperança de salvação e redenção da espécie humana. Que se iluda: o mundo para mim está perdido, que eu já me perdi para o mundo há muito na minha vida errante. A ele devo comentários muito pertinentes, chamadas de atenção a apontar-me a realidade, retirando-me da privação com os gatos para o encontro com pessoas de carne e osso, daquelas pessoas que alimentam a sua intriga interior de veleidades sugadas dos átrios traseiros da política, dos balneários do futebol, das revistas da pornografia mundana ou financeira, ou das tristes telenovelas e concursos das nossas áridas televisões. Entedia-se a alma, salva-se o corpo, atestado de Gin de qualidade e sem custos, que fornecer as botelhas é dever de hospitalidade. A ele devo a arrumação, catalogação, completamento e maquilhagem dos meus escritos deixados um pouco por toda a parte, não percebendo porque me retem facturas nas caixas que ele chama do meu espólio, quando deveriam ir direitas para o IRS, só porque lhes deixei umas garatujas geralmente começadas por "não esquecer de...". É um labor apaixonado que não compreendo, mas que integro na sua natural afeição e vício pelas colecções.

Enquanto o Gervásio me apurava a escrita e endireitava os papéis, veio a revelar-se um exímio entendedor do meu pensamento. Digo-lhe muitas vezes que ele o conhece melhor que eu e que vai muito à minha frente. Ri-se, com aquele trejeito que não é de rir, que é puro instinto social. Tenho confiança nele suficiente para o deixar aqui, neste lugar, a publicar os postes em meu nome, ou no dele, que a isso se obriga, avançando no ensaio e na estória que lhe constitui o apêndice. Esta foi objecto já de apendicectomia, residindo agora noutro blogue. Da minha parte resta-me ir tratar das courelas e fazer a dança da chuva que o campo bem precisa.

Ao Gervásio boa sorte. Boa sorte, companheiro.

Pátria e Mátria, lugares de origem

Seja a Pátria a língua portuguesa (Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m'a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha. Livro do Desassossego, Bernardo Soares); seja a Mátria a matriz da identidade nacional: com Pessoa e Natália não nos safamos! Mas numa coisa, convenhamos, estamos de acerto com os poetas: a língua portuguesa é a matriz de uma comunidade de identidades nacionais.

Está a coisa em saber de que Lugar vem a gente: se tudo vem do pai, temos Pátria; conversamente, se tudo vem da mãe, temos Mátria. E nisto de saber se vimos de um ou de outro, o que é conversa típica de vizinhas - Ai, a expressão dos olhinhos é tal e qual o pai quando era pequenino. Ai vizinha, retorque a outra, e as orelhas pequeninas por detrás dos caracóis loiros, não parece a mãe? E não nos esqueçamos que a vizinhança não é só maldizer e lavagem de roupa suja, é a própria vida e o colorido de um lugar - façamos uma incursão pelo caso nacional que, de tão estouvado, merece um lugar de mérito no grande livro dos lugares que se dá por nome o Guiness.

Há quem ache que tudo vem do pai, o pater familias, o braço forte, o braço armado, intrépido e façanhudo, espadeirando a torto e a direito e afogando o inimigo em sangue. O pai é o dono das terras, não seu cultivador - que esse é mouro de trabalho e mouro há-de morrer - mas seu presor.

A mitologia nacional tem por pai, o fundador da pátria, Afonso Henriques, filho mulato das castas galego-visigótica e borgonhesa, baptizado em Alvarinho e crescido à força de arroz de sarrabulho, lampreia e posta barrosã.

Em plena crise de adolescência, retardada pelo desemprego continuado a que o votou o padrasto, senhor de muitas mercês, entediou-se, juntou os amigos de pândega mais chegados, muniu-se de varapaus e porretes e veio por ai, direito ao sul, a desforrar bordoada e a usurpar terras e casarios dos pobres plebeus da Mauritânia e, sobretudo, daqueles que, prestando culto a Cristo, eram colectados pelos cultuadores de Mafama.

Enquanto ganhava forças a sul investia a norte contra o tálamo materno e contra o infame galego que nele mantinha a mãe a ferro e fogo, sendo o ferro mais dele e o fogo mais da mãe. Assim procedendo, cuidava Afonso estar a criar na Europa a primeira grande síntese entre a primeva cultura helénica, clonando o mito de Édipo, e a expansiva civilização semita no que se viria a expressar muito tempo mais tarde (daí o lado profético de Afonso) no chamado conflito edipiano, imaginativa teoria de um judeu do século vinte, personalidade que mais contribuiu para alimentar os scripts do cinema americano na segunda metade daquele século.

Deu isto, como resultado, a expropriação da cama e das quintas maternas e o seu alargamento com a apropriação à força das quintas vizinhas até às praias que foram nossas e que hoje são de ingleses e alemães. A este lugar chamou Afonso de Portugal em referência ao sítio que distava do Porto a Gaia, lugar de estroina da sua predilecção.

Assim se criou esta “ditosa Pátria, minha amada”, o meu lugar primeiro de identidade, como reza na cédula de nascimento e no bilhete identitário.

Há quem, pelo contrário, queira ver as coisas de outro modo, que vem da mãe, a mater, genetrix et nutrix, fonte vivificante e nutridora. E se, com a mãe, a saúde do corpo vem do leite, a saúde do espírito vem da língua que, para o atestar, até se diz materna. A mãe permite-se fecundar, aninhar o embrião nas profundezas das suas vísceras e partilhar com o feto o sangue placentário; depois, é parir e aleitar e cantar canções de embalar:

“Vamos brindar com vinho verde
Que é do meu Portugal
E o vinho verde me fará recordar
Aldeia velha que deixei atrás do mar”

Afonso muitas coisas bebeu vida fora. Verde para ele era um pouco mariconço, queria-o mais maduro, a estalar na língua. Daí veio o ímpeto da conquista. Postou a mão em concha sobre o sobrolho, olhou a sul e proferiu com voz cava e decidida: Cartaxo. Ala que se faz tarde! Foi um instante apoderar-se de Santarém e Lisboa para que todo aquele mar tinto fosse dele.

Mas o leite estava-lhe no sangue, como a ADN mitocondrial na profusão de células que constituíam o seu corpo imenso e latagão. E esse leite, esse ADN mátrio, era o galaico-português, sua língua materna. Rainha deposta, mãe Jocasta vencedora. E Portugal à mercê da Esfinge.

A pátria, diz-se – dizem – é eterna. Pois, se Pátria significa, uns a mandarem, os outros a trabalhar, assim sim, continuamos a ter pátria, cristãos e mouros, sicut erat in princípio, et nunc, et semper, et in sæcula sæculorum. No revés, a Mátria é útero acolhedor: primeiro, galegos, lusitanos e magrebinos; depois, africanos, asiáticos e ameríndios; hoje um pouco por todo o mundo. O meu lugar é o Mundo, em qualquer parte que se fala o Português.

Pena é os políticos portugueses, quando dizem coisa importantes, só falarem inglês.

A curiosidade matou o gato?

A pré-ocupação gera o cuidado (cura) e este devém inquietação, necessidade de saber e inspecção diligente, o curius.

Como já afirmei, o fito da exploração é conduzir-nos à disponibilização de novos lugares. O tema de hoje - a curiosidade - pretende desvelar o mecanismo que nos move à exploração e desmontar a sua arquitectura para compreender o seu funcionamento e eficácia.

Quando se avalia, globalmente, o rendimento intelectual de uma criança, medido em termos de desvio em relação a um padrão etário de desempenho, tem-se em conta a extensão do vocabulário que ela compreende e é capaz de definir verbalmente. É um excelente indicador do nível da sua curiosidade e, indirectamente, um preditor do desempenho de que ela é capaz. Não se pode usar este protocolo com um gato jovem pela razão de que um gato não fala. Mas, como todos sabemos, há outros recursos para entrar em comunicação, quer com os gatos, quer como bebés de tenra idade infantes. De um lado, os recursos tecnológicos verdadeiramente simples de que as ciências do comportamento proveram os investigadores; do outro, os recursos poéticos com os quais, desde a sua alvorada, a humanidade tem comunicado com os bebés, os gatos e os demais entes que partilham a nossa companhia.

Dizer que os gatos são curiosos é um truísmo. Se os gatos pertencem de iure àquele lugar que designamos de humanidade, tal se deve, mas não exclusivamente, à complexidade da sua curiosidade. Gatos e homens irmanam num elevado grau de curiosidade.

A observação mais descuidada põe a curiosidade dos gatos bem no centro, em plena zona focal, da nossa atenção. Na quarta-feira passada andava a arrumar à pressa o meu lugar no Cartaxo para vir passar descansadamente o resto da semana ao meu lugar em Lisboa. Tinha acabado de lavar a loiça do almoço e estava a passar o chão da cozinha com a esfregona. Naturalmente, tinha a porta da cozinha, que dá para o jardim da entrada, aberta. Os gatos mais novos rebolavam-se na areia enovelando-se uns nos outros e interrompiam os seus jogos de cabra-cega e de escondidas para se amandarem de sopetão e em voo rasante sobre os mais velhos que imperturbavelmente esfingeavam solenemente na areia quente do jardim. O Mião postou-se na soleira da porta e, de lá, seguia todos os meus movimentos com os olhos e a cabeça. Exagerei o trajecto e o movimento da esfregona ao que ele correspondeu com o exagero do olhar. Se parava a esfregona, parava a cabeça dele e só movia o olhar para o balde seguindo atentamente o meu esforço para torcer a esfregona. A alturas tantas, passei a limpar a área adjacente à porta da cozinha e o Mião, adivinhando o percurso iminente da esfregona, esticou-se, ostentando um ar incomodado, e, lentamente, saiu porta fora ficando na rua a monitorizar a minha ocupação. Assim que ultrapassei a zona da porta voltou de novo ao seu local habitual de atalaia e continuou a inspeccionar-me diligentemente. Pressenti atrás dele o Bolinha e o Ratito a perscrutarem com os seus olhos esbugalhados tudo em que consiste a cozinha com os seus espaços, o seu mobiliário e equipamento e os infindáveis tarecos que povoam aquele inconfundível lugar humano.

Com o chão da cozinha a mostrar um aspecto muito razoável, e começando a água do balde a ganhar as cores indefinidas da sujidade, decidi aproveitá-la, enquanto possível, para lavar a tijoleira do pequeno alpendre da porta da entrada. Procedi às operações, despejei a água já num estado inconveniente, e dei a volta à casa para entrar pela porta da cozinha. O Mião, ao ver-me, deu às de vila diogo. Entrei e fechei a porta.

Não passara ainda o tempo de dizer um ai quando ouvi dois miados angustiados: eram o Bolinha e o Ratito que tinham ficado enclausurados dentro de casa. Para os leitores que ainda não provaram muita intimidade com os meus gatos, devo esclarecê-los que estes bichos só viram como tecto, em toda a sua curta vida, o céu azul e a barriga bojuda do tanque de lavar roupa adornado nas traseiras do "Anexo". Os pelos todos em pé, as gargantas estridentes, o susto estampado no rosto, os coraçõezitos a badalar desesperadamente nos peitos peludos, aqueles gatos metiam dó. Tentei pegar neles mas só piorei a situação. A tentar fugir-me, escorregavam de pernas abertas sobre a tijoleira ainda molhada parecendo aprendizes muito incipientes de patinagem no gelo com os patins a fugir para os lados opostos. Ao fim de algum tempo, depois de ter o discernimento de lhes abrir a porta da cozinha, fugiram parecendo que levavam o demónio atado nos rabos.

Continuei ainda uns tempos a minha azáfama de pôr em ordem a casa. Ao vir do banho para o salão pressenti uns sons meio abafados a que não dei grande importância mas que me forçou a convergir o olhar para baixo do móvel da televisão. No escuro, quatro olhos intensos fixavam os meus movimentos.

Mediação


Estico-me para as prateleiras superiores da minha biblioteca e não chego lá. Aquele livro que me atrai escapa-se aos meus dedos, parece que se retrai, recolhendo-se no seu lugar. É aquele o livro que eu quero, espero desesperado. Queria tê-lo nas minhas mãos, de páginas abertas, só para desfolhá-lo. Já nem me apetece tanto lê-lo.

Acho que o meu corpo tem que fazer alguma coisa para o abarcar. O lugar do esqueleto está imensamente contido no espaçoso lugar do olhar. Se os meus gatos aqui estivessem, teriam amarinhado pelas estantes para se anicharem lá em cima, de onde zombariam de mim, cerrando os olhos com o ar típico de quem já viu demais e não tolera tanta incompetência.

Eu rebateria a sua opinião num encolher de ombros, dizendo que com uma agilidade assim até eu. Pensando bem vale mais a agilidade para ler do que para trepar.

Será que vale? Afinal, tenho as minhas dúvidas. Por muito que um gato soubesse ler, nenhum livro lhe ensinaria a trepar às alturas.

É então que vou buscar o escadote de quatro degraus e empoleiro-me no cimeiro. Posso então distender os músculos da perna direita e os do braço direito descrevendo uma ogiva a convergir para o livro. A biblioteca transforma-se numa catedral onde pontifico no alto de um escadote. Bom é não estarem lá os gatos, não se lembrassem eles de me saltar para os ombros para se me roçarem no pescoço e me lamberem a barba e a cara com a sua língua de lixa.

Acabaria o livro a ler-me, a mim todo esparregado no chão.