Bem hajas, amigo

Este lugar conta, a partir de hoje, com a dedicada e cordial colaboração do meu amigo de há longa data, Gervásio Leonel.

Dizem-me que sou pouco simpático e directo, sem papas na língua, como a lima rude e amargo, agreste e espinhoso como os simpáticos bichos que abrem galerias no subsolo do Sítio do Tremontelo (que eu nunca vi a não ser esparramados no pavimento da estrada nacional do Cartaxo para Almoster). Calhou ao Gervásio, por ditosa sina, a estrela que de ele fez pessoa afável e cortez no trato, dotando-o a natureza de fina inteligência que lhe permite dissecar as pessoas e as coisas, materiais e imateriais, como uma máquina de cortar fiambre. Não lhe coube por cultura e aquisição devida ao esforço , mesmo que amadora como a minha, a queda para estas coisas da tecnologia. Embora mais novo cerca de uma década, põe-me a zunir feito poste de muito alta tensão, depois a zurrar, quando telefona a meio da noite a perguntar-me coisas incríveis, seja para resolver o problema do browser que não lhe está a responder, ou que tem a memória em baixo, quer outras trivialidades íntimas de qualquer escrevinhador do século presente. Digo-lhe geralmente, e para pôr termo à agonia da conversa, que saia ou volte a entrar, ou, na expressão dos meus confessáveis desejos, que se deite e não se esqueça de acordar amanhã. Pessoa boa como é, ri-se mais por simpatia do que por sentido de humor de que, ao contrário de que julga, está mais despidinho que de roupa no dia em que nasceu. E lá continua a escrever com lápis, esferográfica ou caneta de tinta permanente, que colecciona obsessivamente, como colecciona vinis e outras preciosidades do século pretérito como se, por escassez de idade não o tivesse aproveitado bem, fazendo dele um lugar de retorno e de culto.

Conhecemo-nos há muito tempo, o suficiente para asseverar que é o meu melhor crítico e secretário. Digo "secretário" com a profundeza e a radicalidade da assunção etimológica do termo já que não nos liga qualquer relação profissional. É homem de guardar segredos. É homem também de saber quando e como revelá-los. Sobretudo, é homem de saber como entendê-los. Tem acompanhado, quase desde o início, o desenvolvimento do meu pensamento e da minha escrita de que é fiel curador. A ele devo muitas sugestões, no plano teórico relativas à teorização do "lugar", no plano prático relativas às medidas de preservação da natureza, de utilização racional dos recursos e da reconversão dos resíduos da humana e lixarenta actividade. Ao contrário da minha disposição, a dele encontra-se aberta para a esperança de salvação e redenção da espécie humana. Que se iluda: o mundo para mim está perdido, que eu já me perdi para o mundo há muito na minha vida errante. A ele devo comentários muito pertinentes, chamadas de atenção a apontar-me a realidade, retirando-me da privação com os gatos para o encontro com pessoas de carne e osso, daquelas pessoas que alimentam a sua intriga interior de veleidades sugadas dos átrios traseiros da política, dos balneários do futebol, das revistas da pornografia mundana ou financeira, ou das tristes telenovelas e concursos das nossas áridas televisões. Entedia-se a alma, salva-se o corpo, atestado de Gin de qualidade e sem custos, que fornecer as botelhas é dever de hospitalidade. A ele devo a arrumação, catalogação, completamento e maquilhagem dos meus escritos deixados um pouco por toda a parte, não percebendo porque me retem facturas nas caixas que ele chama do meu espólio, quando deveriam ir direitas para o IRS, só porque lhes deixei umas garatujas geralmente começadas por "não esquecer de...". É um labor apaixonado que não compreendo, mas que integro na sua natural afeição e vício pelas colecções.

Enquanto o Gervásio me apurava a escrita e endireitava os papéis, veio a revelar-se um exímio entendedor do meu pensamento. Digo-lhe muitas vezes que ele o conhece melhor que eu e que vai muito à minha frente. Ri-se, com aquele trejeito que não é de rir, que é puro instinto social. Tenho confiança nele suficiente para o deixar aqui, neste lugar, a publicar os postes em meu nome, ou no dele, que a isso se obriga, avançando no ensaio e na estória que lhe constitui o apêndice. Esta foi objecto já de apendicectomia, residindo agora noutro blogue. Da minha parte resta-me ir tratar das courelas e fazer a dança da chuva que o campo bem precisa.

Ao Gervásio boa sorte. Boa sorte, companheiro.

1 comentários:

Maria Carvalhosa disse...

Ainda não conheço o Gervásio mas, pela forma como sobre ele escreves, já sinto que, neste lugar, vou encontrar mais um amigo. Fico na expectativa (algo ansiosa) dos seus escritos.

Um beijo para ti e outro para ele.