Pátria e Mátria, lugares de origem

Seja a Pátria a língua portuguesa (Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m'a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha. Livro do Desassossego, Bernardo Soares); seja a Mátria a matriz da identidade nacional: com Pessoa e Natália não nos safamos! Mas numa coisa, convenhamos, estamos de acerto com os poetas: a língua portuguesa é a matriz de uma comunidade de identidades nacionais.

Está a coisa em saber de que Lugar vem a gente: se tudo vem do pai, temos Pátria; conversamente, se tudo vem da mãe, temos Mátria. E nisto de saber se vimos de um ou de outro, o que é conversa típica de vizinhas - Ai, a expressão dos olhinhos é tal e qual o pai quando era pequenino. Ai vizinha, retorque a outra, e as orelhas pequeninas por detrás dos caracóis loiros, não parece a mãe? E não nos esqueçamos que a vizinhança não é só maldizer e lavagem de roupa suja, é a própria vida e o colorido de um lugar - façamos uma incursão pelo caso nacional que, de tão estouvado, merece um lugar de mérito no grande livro dos lugares que se dá por nome o Guiness.

Há quem ache que tudo vem do pai, o pater familias, o braço forte, o braço armado, intrépido e façanhudo, espadeirando a torto e a direito e afogando o inimigo em sangue. O pai é o dono das terras, não seu cultivador - que esse é mouro de trabalho e mouro há-de morrer - mas seu presor.

A mitologia nacional tem por pai, o fundador da pátria, Afonso Henriques, filho mulato das castas galego-visigótica e borgonhesa, baptizado em Alvarinho e crescido à força de arroz de sarrabulho, lampreia e posta barrosã.

Em plena crise de adolescência, retardada pelo desemprego continuado a que o votou o padrasto, senhor de muitas mercês, entediou-se, juntou os amigos de pândega mais chegados, muniu-se de varapaus e porretes e veio por ai, direito ao sul, a desforrar bordoada e a usurpar terras e casarios dos pobres plebeus da Mauritânia e, sobretudo, daqueles que, prestando culto a Cristo, eram colectados pelos cultuadores de Mafama.

Enquanto ganhava forças a sul investia a norte contra o tálamo materno e contra o infame galego que nele mantinha a mãe a ferro e fogo, sendo o ferro mais dele e o fogo mais da mãe. Assim procedendo, cuidava Afonso estar a criar na Europa a primeira grande síntese entre a primeva cultura helénica, clonando o mito de Édipo, e a expansiva civilização semita no que se viria a expressar muito tempo mais tarde (daí o lado profético de Afonso) no chamado conflito edipiano, imaginativa teoria de um judeu do século vinte, personalidade que mais contribuiu para alimentar os scripts do cinema americano na segunda metade daquele século.

Deu isto, como resultado, a expropriação da cama e das quintas maternas e o seu alargamento com a apropriação à força das quintas vizinhas até às praias que foram nossas e que hoje são de ingleses e alemães. A este lugar chamou Afonso de Portugal em referência ao sítio que distava do Porto a Gaia, lugar de estroina da sua predilecção.

Assim se criou esta “ditosa Pátria, minha amada”, o meu lugar primeiro de identidade, como reza na cédula de nascimento e no bilhete identitário.

Há quem, pelo contrário, queira ver as coisas de outro modo, que vem da mãe, a mater, genetrix et nutrix, fonte vivificante e nutridora. E se, com a mãe, a saúde do corpo vem do leite, a saúde do espírito vem da língua que, para o atestar, até se diz materna. A mãe permite-se fecundar, aninhar o embrião nas profundezas das suas vísceras e partilhar com o feto o sangue placentário; depois, é parir e aleitar e cantar canções de embalar:

“Vamos brindar com vinho verde
Que é do meu Portugal
E o vinho verde me fará recordar
Aldeia velha que deixei atrás do mar”

Afonso muitas coisas bebeu vida fora. Verde para ele era um pouco mariconço, queria-o mais maduro, a estalar na língua. Daí veio o ímpeto da conquista. Postou a mão em concha sobre o sobrolho, olhou a sul e proferiu com voz cava e decidida: Cartaxo. Ala que se faz tarde! Foi um instante apoderar-se de Santarém e Lisboa para que todo aquele mar tinto fosse dele.

Mas o leite estava-lhe no sangue, como a ADN mitocondrial na profusão de células que constituíam o seu corpo imenso e latagão. E esse leite, esse ADN mátrio, era o galaico-português, sua língua materna. Rainha deposta, mãe Jocasta vencedora. E Portugal à mercê da Esfinge.

A pátria, diz-se – dizem – é eterna. Pois, se Pátria significa, uns a mandarem, os outros a trabalhar, assim sim, continuamos a ter pátria, cristãos e mouros, sicut erat in princípio, et nunc, et semper, et in sæcula sæculorum. No revés, a Mátria é útero acolhedor: primeiro, galegos, lusitanos e magrebinos; depois, africanos, asiáticos e ameríndios; hoje um pouco por todo o mundo. O meu lugar é o Mundo, em qualquer parte que se fala o Português.

Pena é os políticos portugueses, quando dizem coisa importantes, só falarem inglês.

1 comentários:

bettips disse...

Por isso me sinto, às vezes "fora", no mundo: o café, as ruas, o vinho e a alegria dos mercados. Os risos das gentes. Deixei rasto do que foste lembrando. Refiz o caminho, muito fica por dizer. Obg por tão pertinentes observações. Abç